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Um álbum de família no Cemitério de Pianos

O Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto, compõem-se de episódios intercalados de forma não linear, que narram, na voz de três personagens e gerações diferentes, a história de uma família de Benfica, como se tratasse de um álbum desorganizado de fotografias de família, com lapsos temporais, saltos cronológicos, e relatos por diferentes personagens que focam e “capturam” um momento específico com recurso a uma gramática visual que faz emergir medos, esperanças e anseios.
 
Assim, são deslocados para o presente da evocação os episódios do passado, acumulando-se diferentes histórias, que nos transportam para as visões particulares de cada narrador, que vão evoluindo e assumindo diferentes abordagens ao longo do percurso diegético. O narrador não é omnisciente, parte de um ponto de vista exterior, mas interage com as personagens, construindo-as na narrativa a partir do seu olhar particular de situações específicas, minuciosamente detalhadas.
 
Como sugere o título, o epicentro da obra, e cenário aglutinador de todas as personagens, que o revestem de múltiplas e próprias significações, é o Cemitério de Pianos, situado na oficina da família. Neste espaço, constituído de pianos para reparação e construção de outros, vão-se desvendando as relações, frustrações, felicidades e crueldades do quotidiano familiar, subvertendo-nos a um misto de apaixonantes histórias e cruéis tragédias.
 
A história serve-se de um padrão de circularidade e repetição, onde são perpetuados os comportamentos, ações e sentimentos. Francisco Lázaro ama a sua mulher mas contraditoriamente violenta-a, a ela e aos filhos, devido a emoções retraídas como a frustração. A sua mulher consente em silêncio, e os seus filhos são o reflexo disso. Maria, a apaixonada dos romances amorosos mantém-se esperançosa, mas casou com uma figura idêntica à do pai, e revolta-se respondendo às agressões. Marta repete a passividade e aceitação da mãe em relação ao adultério do marido, e à semelhança do pai, que se refugiava na bebida, encontra na comida o seu porto seguro. Simão, cegado inocentemente num olho pelo irmão, e alvo preferencial de agressões do pai, não se contentou e saiu cedo de casa, encontrando na bebida uma forma de evasão.
 
Francisco Lázaro, que se entende como autor da obra, anuncia-nos no primeiro parágrafo a sua morte, narra-a inclusivamente e reflete sobre o passado consciente da sua condição, salientando-se dois episódios em que a sua neta Íris dialoga com o seu espírito, protagonizando a sua consciência e tecendo-lhe duras críticas ao contrapor à sua visão  fantasiosa, a realidade dos seus familiares.
 
 Francisco Lázaro filho, o segundo narrador, e personagem à qual serviu de base o trecho biográfico do maratonista português,  morre no quilómetro vinte e nove dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, depois de correr até à exaustão, fugindo do dilema amoroso que o atormentava, fornecendo-nos detalhes sobre a sua falência de forças, e intercalando-os com memórias fragmentadas.
 
A morte está presente em toda a obra, no entanto serve de elo de gerações e de renovação, seguindo-se à morte do narrador inicial o nascimento do seu neto Hermes, e à data de falecimento do seu filho maratonista, o nascimento do seu único filho, e terceiro narrador.
 
 A narração do filho do Francisco assemelha-se à do avô, podendo considerarem-se homónimos devido ao contexto envolvente, como o “tio cego”. A distinção entre narradores fica no entanto clara pelas referências, a Maria e Marta por exemplo, que diferem entre filhas, irmãs e tias.
 
O facto de o romance se constituir de “imagens desorganizadas”, e separadas por uma pontuação anormal que transmite a ideia de “enfoque” numa determinada cena, confere-lhe um ritmo diferente que implica uma atenção reforçada por parte do leitor.  As tragédias familiares são acompanhadas de mundanos gestos plenos de significação, que simbolizam muitas vezes a união e perdão em momentos difíceis. O elevado nível de pormenorização e detalhe na descrição,  acrescido à fácil identificação do leitor, transporta-nos para a trama do romance, envolvendo-nos pelos recursos estilísticos, descrições, repetições e sinestesias, que nos levam a partilhar os prazeres e dores com as personagens. Não se trata, no entanto, de uma obra fechada, mas aberta à significação e interpretação pessoal de cada leitor que testemunha a vida daquela família, cabendo-nos a nós julgar ou não as ações das personagens.
 
Um álbum de família no Cemitério de Pianos
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Um álbum de família no Cemitério de Pianos

Comentário jornalístico à obra de José Luís Peixoto

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